Para meus colegas terapeutas:
Esses dias um amigo me perguntou se eu não me canso de estudar e se eu realmente preciso continuar fazendo essas pós-graduações, cursos, participar de grupos, ler tanto… É claro que preciso, e muito, ainda estou comendo o feijão com arroz da minha área, e mesmo se não estivesse, o estudo é necessário, essa é a resposta básica…
Mas independentemente da resposta básica, eu fiquei pensando sobre isso. Sobre o porquê dessa pergunta, buscando outras camadas menos óbvias, e acabei viajando aqui dentro…
A maior parte das pessoas no Brasil está lutando o tempo todo apenas para mal sobreviver, e isso normalmente envolve trabalhar com algo que odeia e não faz sentido interno algum fora a sobrevivência. Eu mesmo fiquei nessa dinâmica por pelo menos 15 anos e sei que a maioria das pessoas, por diversos motivos, inclusive limites por condição social, racial, de gênero, etc., não consegue sair. Essas pessoas vão estudar muito enquanto tiverem esperança de quebrar essa dinâmica. Se a esperança não existe, estudar mais para quê, se eu nem gosto do que faço?
Uma pequena parte das pessoas trabalha com o que gosta e faz sentido, mas também vive na agoniante luta por sobrevivência. Esses normalmente estudam bastante, por necessidade — para tentar furar essa bolha — ou por amor e propósito, enquanto eles se sustentam atravessando os perrengues.
E outra pequena parte das pessoas saiu da luta por sobrevivência — ou nasceu em privilégio e nunca conheceu essa dinâmica —, mas não encontra trabalho que faça sentido ou acha que isso é besteira… O trabalho é apenas uma forma de manter ou melhorar essa questão financeira pessoal, e o estudo será apenas uma ferramenta para que isso aconteça, enquanto necessário.
E aí, por fora, entra a pequenina, pelo menos no Brasil, parte das pessoas que consegue trabalhar com o que gosta, faz sentido individual e coletivo e não está mais, ou nunca esteve, lutando por sobrevivência — o verbo é LUTAR, porque se preocupar com isso é para quase todos, com a exceção dos herdeiros, por exemplo. Esse, meus queridos, é um lugar de MUITO privilégio. Eu não estou dizendo que não há luta, que é fácil e que nenhum mérito deve ser reconhecido. Mas é, sim, um privilégio, e precisa ser reconhecido assim.
Nós somos privilegiados.
E, em minha opinião, nós precisamos fazer um bom uso desse privilégio. E isso envolve estar sempre se aprofundando na conexão com a própria alma e trabalhando as próprias sombras — fazendo análise e supervisão — e se atualizando e aprendendo mais com aqueles autores, estudiosos e terapeutas que vieram antes e aqueles que surgem a todo momento, atualizando ou complementando de maneira positiva as teorias do passado — ou seja, estudando.
Veja bem, eu não estou afirmando que o fato de amarmos nosso trabalho significa que seja fácil trabalhar todos os dias ou sempre estar estudando e se trabalhando internamente. Eu, particularmente, tenho dias bem difíceis em que eu até chego a questionar por que não me deixei ser “apenas” um trabalhador “comum”, ocupado no horário comercial e aproveitando todas as noites e fins de semana como bem entender — assim como esse meu amigo. Mas, no fim, esses dias difíceis terminam e o propósito flui e sustenta o caminho, e dias prazerosos ou positivamente significativos, apesar de trabalhosos, me atravessam.
Então é isso… Os cursos, vivências, pós-graduações, livros, supervisões, grupos de leitura, atualizações e debates continuarão enquanto for possível continuarem. É uma necessidade, um amor e, principalmente, um privilégio.
Alguém discorda?
Leandro Scapellato
